Ensino remoto, TICs e Pandemia de COVID-19

Por Lucas Melo e Raul Paiva

Em 31 de dezembro de 2019, no apagar das luzes daquele ano, o mundo se viu diante do anúncio da existência de um novo vírus produtor de infecções em humanos. Tratava-se do novo coronavírus (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus, SARS-CoV-2), agente etiológico da doença do coronavírus (COVID-19), cujos primeiros casos foram identificados em Wuhan, região central da China. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que o surto da doença era uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, o que colocou o mundo sob alerta. Com a rápida disseminação dos casos em vários continentes, numa escalada quase que sorrateira, visto que a ciência não dispunha das tecnologias necessárias à sua identificação e tratamento, em 11 de março a OMS caracterizou a COVID-19 como uma pandemia (OPAS, 2020).

Em termos epidemiológicos, pandemia é a “ocorrência epidêmica caracterizada por uma larga distribuição espacial, atingindo várias nações. A pandemia pode ser tratada como uma série de epidemias localizadas em diferentes regiões e que ocorrem em vários países ao mesmo tempo (Rouquayrol, 2003, p.141). É nesse contexto que governantes e autoridades sanitárias, diante do vazio tecnológico biomédico para seu tratamento, têm estimulado a adoção de medidas protetivas, com destaque para o distanciamento social por meio de quarentenas – até hoje esta é a única forma de evitar a expansão do vírus e, consequentemente, da doença causada por ele.

A emergência da pandemia parou, de diversas formas, várias atividades humanas, incluindo aquelas típicas do campo educacional. Em nossa experiência como docente e estudantes de pós-graduação em estágio de docência, o imperativo do ensino remoto e a ampla utilização de tecnologias de informação e comunicação (TICs) se colocou como um desafio. Nos cursos de graduação da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP) as disciplinas pelas quais o Prof. Lucas Melo (líder do LASSEn) é responsável foram ministradas integralmente de maneira remota por meio da mediação com TICs e de encontros síncronos na plataforma Google Meet. Se, no primeiro semestre de 2020, a adaptação das atividades ao ensino remoto requereu, de início, uma fase de aprendizado sobre o uso de TICs na educação, no segundo semestre o planejamento das disciplinas já partiu da compreensão de algumas especificidades sobre esta modalidade de ensino, oriunda da própria experiência da equipe docente e do nosso aprimoramento pedagógico sobre a temática.

Prof. Lucas ministrando aula de forma remota na plataforma Google meet em 08 de maio de 2020. Acervo pessoal.

Em decorrência dos investimentos realizados em cursos de desenvolvimento docente relativos ao uso de TICs na educação, destacamos aqui as atividades inovadoras realizadas nas disciplinas ERP0125 Abordagem Antropológica de Saúde e Doença (com a participação de Raul Paiva como bolsista do Programa de Aperfeiçoamento de Ensino da USP), ERP0233 Abordagem Antropológica de Saúde e Doença e ERP0131 Educação e Sociedade, oferecidas no 2º semestre de 2020. O caráter de inovação consistiu na utilização das TICs e, consequentemente, na produção de atividades caracterizadas pelo alto grau de interatividade. No caso das disciplinas Abordagem Antropológica de Saúde e Doença, buscamos discutir ao longo das aulas uma “antropologia da pandemia de COVID-19” de maneira integrada aos conteúdos programáticos constantes nos Planos de Curso das disciplinas. Já na disciplina Educação e Sociedade, priorizamos a vinculação dos conteúdos previstos a casos e problemas brasileiros contemporâneos no setor educação.

Raul Paiva, doutorando e bolsista do PAE/USP em uma das disciplinas. Acervo pessoal.

Por se tratarem de disciplinas nas quais trabalhamos com conteúdos da área de Ciências Sociais, a inclusão das problemáticas relativas à pandemia de COVID-19 foi fundamental para tornar o aprendizado mais significativo e ancorado nas questões que emergem na realidade social brasileira. Ademais, esta estratégia funcionou, ainda, como um elemento de motivação extrínseca para os estudantes que se viram envoltos em temas de seus próprios cotidianos como pessoas, mas também como futuros profissionais de Enfermagem. Há que se destacar, igualmente, a importância de contar com os recursos disponibilizados pela USP por meio do G Suite for Education.

Elencamos a seguir as principais estratégias produzidas:

  • Trabalho em pequenos grupos, cuja composição ficou sob a responsabilidade das turmas. Os grupos foram fixos ao longo de todas as atividades, como forma de favorecer o desenvolvimento de um processo grupal e o trabalho em equipe.
  • Cada grupo tinha uma sala de chat (ferramenta disponível no G Suite) na qual puderam realizar atividades guiadas por roteiros durante as aulas síncronas. A equipe docente (professor e estagiário de docência) tinha acesso às salas e podiam acompanhar as atividades. O uso dessa ferramenta incrementou a interatividade das aulas, conforme relatos dos estudantes.
  • Cada grupo criou um site (listados ao final deste texto) com nomes e layout desenvolvidos pelos estudantes. O site é uma ferramenta disponível no G Suite que permite criar e personalizar a página podendo esta ser mantida privada ou pública. A produção dos sites se deu de forma contínua, ao longo de toda a disciplina, permitindo o aprimoramento das habilidades dos grupos para uso da plataforma. Os sites receberam nomes diversos de escolha dos grupos, ao mesmo tempo em que evidenciavam o tom dos debates desenvolvidos nos textos publicados e suas relações com os objetivos das disciplinas.
  • O objetivo da criação dos sites era produzir um espaço virtual e interativo no qual os grupos pudessem registrar os textos elaborados ao longo das disciplinas. Para a realização dos textos foram disponibilizados roteiros com instruções gerais (formatação, normas, dicas, acessibilidade, dentre outras orientações) e específicas para cada encomenda de postagem.
  • Cada postagem de texto realizada no site dizia respeito a uma das temáticas trabalhadas nas aulas e permitia aos estudantes desenvolverem o pensamento crítico-reflexivo a partir de uma mirada sobre fenômenos que nos atingem, mesmo que de maneiras desiguais, cotidianamente.
  • Por meio de atividades realizadas durante os encontros síncronos no Google Meet, os estudantes eram estimulados a refletirem sobre as temáticas e a produzirem as postagens extraclasse. Para elucidar dúvidas dos grupos, foram realizados fóruns em horários de escolha das turmas, antes da elaboração dos textos das postagens para os sites.
  • Além do conteúdo propriamente dito, a produção dos textos permitiu colocar os estudantes em contato com problemáticas de grupos sociais historicamente vulnerabilizados, mas não a partir de narrativas etnocêntricas. Pelo contrário, durante as atividades preparativas e de elaboração dos textos, as turmas tiveram contato com as perspectivas desses grupos sociais, por meio de movimentos sociais e de coletivos que vocalizam publicamente suas demandas. Aqui priorizamos o trabalho com páginas e perfis desses grupos ou de suas lideranças no Facebook, Twitter e Instagram, além de reportagens e projetos fotográficos.
  • Os textos postados nos sites dos grupos foram avaliados por meio de critérios e suas respectivas pontuações negociados com as turmas. Para evitar a competição entre os grupos/sites, coletivamente definimos que cada grupo teria autonomia para definir a pontuação de cada critério, o que permitiu uma avaliação individualizada. À cada postagem era atribuída uma nota (0 a 10 pontos).

Além disso, as disciplinas mantiveram a utilização de metodologias ativas de aprendizagem, como o Team Based Learning (TBL) que adaptamos para o contexto remoto, Phillip 66, estudos dirigidos, atividades em pequenos grupos, seminários, rodas de conversas, produção de documentários. Além disso, optamos pelo amplo emprego de TICs, tais como: criação de sites (Google Sites) e de conteúdo para os sites pelos estudantes, Salas de chat (Google Chat), perfil e páginas em redes sociais on-line (Twitter, Facebook e Instagram), canais de Podcast (Mundaréu, Museológicas e Café com Sociologia) e materiais audiovisuais (músicas, filmes, vídeos, documentários, charges, tirinhas, etc.). Todos estes recursos foram empregados em conjunto com as bibliografias básica e complementar dos programas das disciplinas.

Prof. Lucas ministrando aula de forma remota na plataforma Google meet em 15 de junho de 2020. Acervo pessoal.

A proposta de produção de sites foi bem recebida pelas turmas – embora, a princípio, tenham ficado inseguros e preocupados se dariam conta da tarefa. O clima de insegurança logo se dissipou, na medida em que os grupos apresentavam os sites nas aulas e recebiam feedbacks da equipe docente e demais estudantes. Ao final das disciplinas, um ponto que ganhou relevo, praticamente entre todas as pessoas envolvidas, foi a possibilidade de terem podido desenvolver a criatividade e outras formas de construir reflexões teoricamente fundamentadas, sem que tivesse de se enquadrar nos modelos ofertados, tradicionalmente, pela academia. Um dos grupos, o Antropolize-se, registrou um depoimento sobre a experiência de produção do site:

“A experiência da criação de postagens como atividade da disciplina de Antropologia foi inovadora e tornou a aprendizagem muito mais fácil, pois permitiu o uso de outros recursos além da escrita, como imagens, vídeos de músicas e outras ferramentas as quais despertaram a nossa criatividade, tornando o aprendizado e envolvimento com a disciplina muito mais proveitoso. Além disso, o grupo pôde se aprofundar mais em muitos assuntos antropológicos e sociais, observando mais de perto a realidade enfrentada pelas diversas populações e aprendendo a olhar com empatia e respeito para com todos os indivíduos e assim tomando ciência do nosso papel como enfermeiros e como indivíduos sociais. Por fim gostaríamos de deixar nosso agradecimento ao docente da disciplina pela oportunidade e todo ensinamento que nos proporcionou com a proposta de um trabalho como este.”

Compartilhamos a seguir os sites e seus respectivos links de acesso. Os textos publicados já foram corrigidos em seu conteúdo, mas ainda não foram revisados pelas/os autoras/es. A proposta é que a revisão mais detalhada seja realizada durante a preparação de manuscritos a serem reunidos e publicados em 2021 no formato de e-book. Com o livro, buscamos não só registrar as nossas experiências como estudantes e docentes, mas, nomeadamente, memórias de ensinagem em tempos pandêmicos. Esperamos que gostem dos sites!

DISCIPLINA – ERP0125 ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DE SAÚDE E DOENÇA (Curso Bacharelado em Enfermagem – EERP-USP)

DISCIPLINA – ERP0233 – ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DE SAÚDE E DOENÇA (Curso Bacharelado e Licenciatura em Enfermagem – EERP-USP)

DISCIPLINA – ERP0131 – EDUCAÇÃO & SOCIEDADE (Curso Bacharelado e Licenciatura em Enfermagem – EERP-USP)

Referências

ROUQUAYROL, M. Z.; ALMEIDA FILHO, N. 2003. Epidemiologia e saúde. 6ª ed. Rio de Janeiro: Medsi.

LASSEn realiza Ciclo de Debates On-line

Desde dezembro de 2019 o mundo tem sido atingido pelo desenvolvimento da pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-COV-2), agente viral responsável pelo processo infeccioso característico da COVID-19. Diante das dimensões da pandemia, a Organização Mundial da Saúde e as autoridades sanitárias locais têm orientado o distanciamento social, por meio de quarentenas – a maneira mais eficaz de contenção da expansão do vírus.

Este cenário provocou uma série de mudanças no cotidiano universitário e, também, na maneira como temos desenvolvido nossas atividades de pesquisa. Nesse sentido, o uso das redes e mídias sociais e da internet tem marcado os últimos três meses e implicado na produção de uma série de atividades e encontros virtuais. Interessante notar que, ao menos no contexto universitário, nunca estivemos tão conectados e produzindo um conjunto de diálogos com a comunidade acadêmica de diversas instituições de ensino e de pesquisa e com a sociedade em geral. Talvez um dos efeitos marcantes desse tempo de pandemia é a construção de estratégias de divulgação científica à sociedade mais ampla, num franco diálogo com movimentos sociais, associações, profissionais de diversos setores e gestores públicos, em especial do Sistema Único de Saúde (SUS).

Nesse contexto, o LASSEn – Laboratório de Pesquisas Sociais em Saúde e Enfermagem da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP, tem dado continuidade às suas atividades por meio do uso de recursos on-line. Além disso, como forma de mantermos nossos encontros de estudo e de discussão de pesquisas conduzidas por nossas/os pesquisadores, a equipe do LASSEn propôs a realização de um Ciclo de Debates On-line. Por meio desse projeto, buscamos refletir sobre os temas/problemas pesquisados e suas implicações no contexto da pandemia de COVID-19. Para tanto, estão sendo organizadas lives com transmissão on-line em nosso canal no YouTube (https://www.youtube.com/channel/UCF8fB6r5sree-1RghIURDCA).

Neste outono já foram realizadas duas lives. A primeira, COVID-19 e pessoas LGBTI+: dos impactos às estratégias de enfrentamento, foi organizada por Alef Santana e Maylla Mota, pesquisadores do LASSEn, e ocorreu no último dia 10 de junho. O objetivo da live foi refletir sobre as estratégias que visem a minimizar os impactos da COVID-19 na vida de pessoas LGBTI+, reconhecendo a atuação de organizações não governamentais (ONGs) e outras entidades do movimento social e analisar o papel do Estado no atual contexto dessa população. Na ocasião, Alef e Maylla receberam como convidades: Airles Ribeiro, homem cis gay, coordenador da Política Municipal de Saúde LGBT de Recife, capital pernambucana; e Louise Rodrigues, travesti preta, estudante de medicina da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP e pesquisadora do LASSEn. O registro desse encontro e das ricas discussões estão disponíveis em nosso canal no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=3IDrill_meY).

Cartaz de divulgação.

A segunda live, A pandemia de COVID-19 em contextos descentrados: um olhar aos brasis profundos, teve como organizadores os pesquisadores do LASSEn Lucas Melo e Thaís Pires e ocorreu no último dia 17 de junho. Tanto Thaís quanto Lucas têm se detido, nos últimos quatro anos, a pensar as experiências de pessoas que vivem em contextos fora dos grandes centros urbanos, com uma atenção especial à maneira como as políticas públicas de saúde são implementadas e performadas nesses contextos. Assim, na live refletiu-se sobre experiências individuais e coletivas relativas ao enfrentamento da pandemia de COVID-19 desenvolvidas em contextos descentrados, como: cidades pequenas e interioranas, regiões de fronteiras, áreas rurais, comunidades tradicionais, sertões, etc. Na discussão foram problematizadas as estratégias de enfrentamento dessa crise sanitária a partir da integração dos movimentos sociais, das ciências sociais e da saúde coletiva na análise situada da maneira como a pandemia e suas múltiplas escalas (globais, continentais, regionais, nacionais e locais) são performadas e significadas pelas pessoas que vivem nesses contextos, dando ênfase às suas ações e criatividade.

“Que a ciência se mostre para sobreviver neste contexto”, disse Vanessa Campos em suas palavras finais na segunda live do Ciclo.

Participaram da live a ativista dos direitos humanos e HIV/aids Vanessa Campos que também é Representante Estadual da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/aids (RNP+) do Amazonas e Secretária de Comunicação da RNP+ Brasil; Rodrigo Braga, antropólogo, professor do Instituto de Natureza e Cultura da Universidade Federal do Amazonas e doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional – UFRJ; e Raquel Bastos, antropóloga, sanitarista, professora da UFRN (campus Caicó) e coordenadora do projeto Telessaúde no Sertão. O vídeo da live também se encontra registrado no nosso canal no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=L9_s24xvVdI).

Por fim, destacamos que esta é uma ação que articula pesquisa e extensão universitária, confirmando a nossa vocação para a produção de conhecimento científico em diálogo e parceria com a comunidade em geral. Além dessas lives estão sendo preparadas mais duas que problematizarão a saúde da população negra no Brasil e o ativismo no campo das doenças raras. Em breve divulgaremos mais informações.

Texto: Lucas Melo